No carnaval, os desfiles das escolas de samba mostram mulheres seminuas
a sambar. Emissoras de TV fazem a cobertura dos bailes gays nessa
época. Telejornais exibem imagens da folia nos blocos em todo país onde a
sensualidade rola solta. Fora do Carnaval, São Paulo celebra a
diversidade sexual e vira palco de uma das maiores paradas gay do mundo.
Em 2009, a universitária Geisy Arruda teve de sair da faculdade em São
Bernardo do Campo (SP) escoltada por policiais e ouvindo xingamentos por
usar um vestido considerado justo e curto. A intolerância também
frequenta a Avenida Paulista, local cujas câmeras ali instaladas
costumam registrar, com frequência, ataques a homossexuais.
"A mesma avenida que abriga uma das maiores paradas gay do mundo é o
lugar onde se mata homossexuais. É inadmissível. Somos pessoas de duas
caras, falsos moralistas", afirma a historiadora Mary Del Priore, que
estuda a sexualidade no Brasil ao longo dos séculos. Mary acaba de
lançar o livro "A Carne e o Sangue" (Editora Rocco), que aborda o
triângulo amoroso constituído por Dom Pedro I, a Marquesa de Santos e a
imperatriz Leopoldina. "D. Pedro dizia que fazia ‘amor de matrimônio’
com Leopoldina e ‘amor de devoção’ com Domitila. Do sangue nobre cuidava
a mulher, que lhe dava os filhos e era a matriz. O prazer era com a
outra. A imperatriz era muito religiosa e tinha horror ao sexo. A
marquesa, ao contrário. E D. Pedro era um inconsequente machista, que
teve dezenas de amantes", conta Mary.
Segundo a historiadora, o papel da igreja na formação da nossa
sociedade no século 19 ajudou a formar essa dupla moral. "A casa tinha
de ser o exemplo da sagrada família de Maria, José e Jesus, voltada para
os valores mais altos que preconizava a igreja católica. A igreja
consagra o matrimônio como obrigatório. Mais do que isso: o sexo dentro
do casamento tinha de ser higiênico e a única preocupação era a
reprodução". De acordo com a pesquisadora, a igreja regulamentava
inclusive o que deveria acontecer entre quatro paredes.
“Os beijos eram condenados. Os padres confessores perguntavam o que as
pessoas faziam no quarto e reprovavam todo tipo de toque no corpo com
objetivo de ter prazer. A posição da mulher sobre o homem era contrária à
lei divina. E ficar de quatro seria uma forma de animalizar o ato. Esse
casamento sem prazer vai incentivar o sexo prazeroso fora de casa",
declara a historiadora. E ela inclui outro exemplo da ambiguidade moral
do brasileiro: as pornochanchadas da década de 70. "Há vários estudos
que mostram que esse foi um momento de revolução sexual. Mas uma
característica comum nesse tipo de filme é que o homem que pega todo
mundo está sempre atrás de uma virgem. E a prostituta sonha com
casamento de véu e grinalda. No Brasil, a mulher sempre teve de ser
pura, virgem, não saber de sexo. Isso depunha contra o sexo feminino até
pouco tempo", comenta Mary.
Homossexuais são assassinados e mulheres mentem sobre parceiros
O preconceito contra as mulheres que praticam sexo livremente
permanece, segundo Mirian Goldenberg, antropóloga e professora na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Estive na Suécia fazendo
pesquisas sobre as mulheres. Lá, elas não são julgadas pelo
comportamento sexual, se teve 20 parceiros ou um. Aqui as meninas
mentem. Elas me dizem que se falarem que tiveram mais de três parceiros
não arrumam namorados. E olha que estou falando de jovens que estudam
ciências sociais", diz Mirian, que acrescenta: "No Brasil, ter marido e
constituir família é de um valor enorme para a mulher. Numa cultura
assim, é difícil ter liberdade sexual. Conheço algumas que têm medo do
porteiro do prédio. Homem entra com dez mulheres no apartamento sem
nenhum problema. Elas não fazem isso. Esse tipo de preconceito afeta o
cotidiano e já deveria para ter acabado", afirma a antropóloga que
estuda a sexualidade na classe média carioca desde 1988 e é autora dos
livros "Toda Mulher é Meio Leila Diniz" e "Por Que Homens e Mulheres
Traem?" (Edições BestBolso).
O preconceito pode assumir formas agressivas e terminar em mortes como
mostra o Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais do Grupo Gay da
Bahia. De acordo com o documento, em 2011, ocorreram 266 assassinatos
de gays, travestis e lésbicas no país. Isso significa um aumento 118%
desde 2007, quando foram registrados 122 casos. Esses números foram
obtidos através de pesquisas em jornais, internet e notificação de
pessoas ligadas às vítimas.Embora os dados alertem para a violência cometida contra esses
grupos, mostram também uma mudança social, de acordo com Sérgio Carrara,
professor de antropologia do Instituto de Medicina Social da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Centro
Latino Americano Em Sexualidade e Direitos Humanos. "Acho uma
modificação importante no cenário a maior visibilidade que os crimes
homofóbicos estão tendo na mídia. Começa-se a discutir e reconhecer a
existência dessa situação. Vivemos um processo histórico, onde está se
exigindo respeito e reconhecimento. Mas isso produz reações e situações
de conflito de moralidades distintas", comenta o professor.
Para o psiquiatra e sexólogo Ronaldo Pamplona da Costa, a ignorância
está na raiz do problema. "Todo preconceito com relação à sexualidade é
baseado na falta de conhecimento sobre o assunto. De uns anos para cá,
começou a ser tratado como impróprio mostrar preconceitos sobre
sexualidade. As pessoas passaram a posar de conhecedores ou liberais
quando nem entendem do assunto. Isso resulta no brasileiro falso
liberal", diz o médico, autor de "Os Onze Sexos" (Editora Gente),
lançado em 1994 no qual abordou os cinco tipos de sexualidade para
homens e mulheres (heterossexualismo, homossexualismo, bissexualismo,
travestismo e transexualismo), acrescidos de um 11º grupo chamado de
intersexo, onde estão agrupadas pessoas com defeitos físicos internos ou
externos na região genital como hermafroditas, por exemplo. "Na época,
sabia-se só sobre o heterossexualismo e colocava-se na mesma sacola do
homossexualismo todas as outras sexualidades", diz Ronaldo.
Para dar uma ideia do desconhecimento sobre a sexualidade, o médico
cita a própria categoria profissional. "Na faculdade de medicina não tem
estudo da sexualidade nos aspectos biológicos, psicológicos e sociais.
Só como funcionam os órgãos genitais com vistas à reprodução", diz o
psiquiatra. "Ninguém nasce preconceituoso. Ao longo da educação as
pessoas vão assimilando isso. Um homossexual pode ser preconceituoso em
relação à própria sexualidade em alguma medida porque, no geral, fomos
criados para sermos heterossexuais", fala Ronaldo, relatando que,
recentemente, atendeu em seu consultório uma jovem universitária que se
assumia homossexual, embora não tivesse tido a prática, e que já havia
feito amplas pesquisas sobre o tema. "Depois entrou a mãe dela, sozinha,
uma mulher com curso superior, dizendo que não aceitava de forma alguma
essa situação e que faria tudo para que a filha deixasse de ser
homossexual."
Preconceito: modo de combater
Para que homens e mulheres possam exercer livremente a sexualidade, sem
medo de se tornarem vítimas de ataques de qualquer natureza, serão
necessárias muitas mudanças, segundo os especialistas. "Temos liberdade
política, mas não somos cidadãos. Democracias requerem esse sentimento.
E não temos isso porque não temos educação", diz Mary Del Priore, que
ainda faz críticas às mães. "Elas dão no leitinho para o filho homem a
superproteção, a homofobia. É uma mulher que adora ser chamada de
gostosa, que se identifica com mulher fruta, para quem mulher
inteligente é sapatão. É a mãe a figura que transmite esse preconceito e
essa dupla cara", diz a historiadora.
Mirian Goldenberg pensa da mesma forma. "O valor da brasileira sempre
foi muito associado ao seu corpo, que tem de ser sexy, seduzir. Uma
mulher alemã, por exemplo, é poderosa porque tem cargo de chefia,
dinheiro, pode decidir, é algo objetivo. O poder da brasileira sempre
foi associado à sexualidade dela para a sedução do outro e não para o
próprio prazer. Todo o peso do julgamento tem a ver com a imagem
corporal que ela constrói", diz Mirian, que acha mais complicado lutar
contra o que chama de preconceito invisível.
"As atitudes mais violentas de intolerância acabam indo parar na TV e
geram movimento de repúdio. Mas ao nos submetermos mentir no dia a dia,
ter medo do julgamento do porteiro, evitar o decote para não sofrer
preconceito, nós só o reforçamos", diz Mirian, que cita uma figura
famosa por quebrar tabus nos anos 60. "Como Leila Diniz acabou com o
estigma da mulher grávida não poder mostrar a barriga? Foi para a praia
de biquíni dizendo que a barriga era linda. E hoje todas as gestantes
podem fazer isso. Esse preconceito invisível é mais difícil de acabar",
diz Mirian.
Para Sérgio Carrara, é possível construirmos uma nova moral sexual.
"Temos um processo de conflitos que envolve movimento LGBT, imprensa,
sociedade civil, políticos. São forças que querem traçar uma nova
moralidade sexual que não seja baseada na discriminação. Mas há também
uma reação a isso, seja na forma de violência física ou simbólica. E as
escolas são fundamentais nessa construção que deve ser baseada em
liberdade, igualdade e dignidade, na qual a orientação sexual das
pessoas diz respeito apenas a elas. Ao considerar esses princípios, os
preconceitos e estereótipos tendem a desaparecer."
Fonte: uol.com.br